quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

E a poesia continua.....José Régio

Meu caro amigo Xaviota, aqui lhe deixo um dos meus poemas preferidos.
Como é extenso já tem muito para "comentar":


Cântico Negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

José Régio, in 'Poemas de Deus e do Diabo'

Um abraço
Ana Fernandes

1 comentário:

Xaviota disse...

O que é que pode levar um Pereira a trocar de nome por um Régio? Poesia? Claro que não. Insegurança pura e dura. É isso mesmo, o poeta é alguém que usa a palavra para refúgio, sublimação ou mera masturbação intelectual. "Sei que não vou por aí". Ai não que não vais. Vais como os outros vão, só que tens a mania que não. Vais Régio, não vais Pereira, mas vais, aliás foste.
Se fosse hoje, talvez tivesses escolhido ser José Cavaco, porque o outro José já está ocupado. E dirias, em vez do "não vou por aí", "não tomo esse avião" ou "não comungo dessa opinião".
Ai Pereira, Pereira. C'est le temps.
Já agora diz-me lá: como é que se está por aí?
Caro Pereira

Passeio BTT Aboboreiras