segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Os meus POETAS::::

-Às vezes apetece desabafar, não ao ralo de um diário, mas publicamente, alto e bom som.

Atirar aos quatros ventos meia dúzia de verdades de que ninguém suspeita, e são cilícios cravados no coração. Mas o pudor, em certos casos, pode mais que o desespero. E calo-me.

Além de nada me garantir que o feitiço se não voltasse contra o feiticeiro. Não há que fiar nesse pacto formal de conivências que dá pelo nome de senso comum.


“Miguel Torga – Diários”



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Um abraço Ana

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Os meus POETAS....

“- Lavro aqui mais uma vez o meu protesto contra toda esta filosofia do pessimismo que nos sufoca, e esta literatura do absurdo que nos liquida. Nenhum argumento nem nenhum sortilégio podem apagar no espírito do homem a luz de ilusão que ali bruxuleia. O erro grosseiro dos ironistas e dos derrotistas é não verem que eles próprios desmentem o visco e as profecias, porque, se lutam, é porque confiam. Sobretudo parece-me uma limitação querer fotografar para a eternidade a face monstruosa de um momento. A Europa pode estar cansada, falida, contaminada por vícios incuráveis, mas a Europa não é o mundo, e ela própria tem ainda pedaços do corpo sem gangrena. Quando todos os analfabetos e famintos que lhe restam tiverem voz e pão, e falem de náusea, quando a herança da história, os bens do espírito forem repartidos igualmente por todos os seus filhos, e o clamor colectivo seja de teimosa renúncia, então sim, soou a hora. Mas antes disso, não!
…….


Há ainda uma poda que é necessário fazer: eliminar da actual angústia que nos atormenta o cinismo que a macula e o parasitismo que a explora. A verdadeira razão e o verdadeiro instinto mandam curar as feridas. Só os mendigos deitam sal nas chagas para as avivar.
Alienação humana! Quem é que autorizou meia dúzia de intelectuais impotentes a falar deste modo em nome da humanidade? A chapinhar na lama deles, e a proclamar que é na lama dos outros? Que o testemunho da nossa aventura na terra é um rosário de traições e injustiças, ninguém o nega; que é preciso que se diga isso de todas as maneiras, é evidente; mas nem tudo o que fizemos foi mau, e estamos a começar ainda.
Não! Há-de haver uma salvação possível neste mar de naufrágios, e vão sendo horas de erguer a voz contra os derrotistas da jangada. Aterrados pelas suas fúnebres ladainhas, temo-nos esquecido de reparar nos acenos do horizonte, onde amanhece sempre uma ilha à nossa espera. Não a ilha solitária de Robinson, que seria o recomeçar inútil duma vida de egoísmo e de esterilidade, mas o húmus generoso dum novo mundo onde se possa semear a esperança.”

Miguel Torga – Diário

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Um abraço
Ana

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Os meus POETAS.......


Os Grandes Indiferentes



Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.

À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário.
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.

Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Trespassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo de xadrez.

Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
E, ao reflectir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa distância próxima,
Inda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho.

Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo filhos.

Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(É ainda dado ao cálculo dum lance
Para o efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predilecto
Dos grandes indif’rentes.•
Caiam cidades, sofram povos, cesse
A liberdade e a vida.
Os haveres tranquilos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre.

Meus irmãos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
De acordo com nós -próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.

Tudo o que é sério pouco nos importe,
O grave pouco pese,
O natural impulso dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranquila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.

O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.

A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece...
O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.

Ah! sob as sombras que sem querer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo do xadrez
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.

Ricardo Reis - "Odes"

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Um abraço Ana

sábado, 8 de junho de 2013

"Os meus POETAS" .......



Com Fúria e Raiva


Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras


Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada


De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse


Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra


Sophia de Mello Breyner "O Nome das Coisas"

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Um abraço
Ana


quarta-feira, 1 de maio de 2013

"Os meus POETAS" .......



1 de Maio de 1974


- Colossal cortejo pelas ruas da cidade. Uma explosão gregária de alegria indutiva a desfilar diante das forças de repressão remetidas aos quartéis.

- Mais bonito do que a Rainha Santa…. – dizia uma popular.

Segui o caudal humano, calado, a ouvir vivas e morras, travado por não sei que incerteza, sem poder vibrar com o entusiasmo que me rodeava, na recôndita e vã esperança de ser contagiado.

Há horas que não são de todos. Porque não havia aquela de ser também minha? Nas não. Dentro de mim ressoava apenas uma pergunta: Em que oceano de bom senso iria desaguar aquele delírio? Que oculta e avisada abnegação estaria pronta para guiar no caminho da história a cegueira daquela confiança?

A velhice é isto: ou se chora sem motivo, ou os olhos ficam acessos de lucidez.


“Diário Volumes IX a XII– Miguel Torga”

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Um abraço Ana

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Os meus POETAS......

O INFANTE


Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.

Deus quis que a terra fosse toda uma,

Que o mar unisse, já não separasse.

Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,

Clareou, correndo, até ao fim do mundo,

E viu-se a terra inteira, de repente,

Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português.

Do mar e nós em ti nos deu sinal.

Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.

Senhor, falta cumprir-se Portugal!




“Fernando Pessoa – Mensagem"

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UM abraço Ana

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Os meus POETAS......




PRIMEIRO / O DOS CASTELOS


A Europa jaz, posta nos cotovelos:

De Oriente a Ocidente jaz, fitando,

E toldam-lhe românticos cabelos

Olhos gregos, lembrando.

O cotovelo esquerdo é recuado;

O direito é em ângulo disposto.

Aquele diz Itália onde é pousado;

Este diz Inglaterra onde, afastado,

A mão sustenta, em que se apoia o rosto.

Fita, com olhar esfíngico e fatal,

O Ocidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal.


"Fernando Pessoa - Mensagem"


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Um abraço Ana

Passeio BTT Aboboreiras