domingo, 2 de dezembro de 2012

"Os meus Poetas ............"





“ A mulher instruída, a mulher emancipada, a mulher equiparada..óptimo, óptimo. Decorridos tantos milénios de equívoco e dissimulação – a tutela estratégica da virilidade insegura sofrida passivamente no plano social e repelida activamente no doméstico -, o sol repentino: a parelha edénica, irmanada na decência original, finalmente jungida em boa paz ao mesmo carro da vida. O tirano aflito, consumido, insatisfeito, que naufragava nos mares, caía do espaço, asfixiava nas minas, combatia de armas na mão, criava, investigava e descobria, desobrigado dessas exclusividades – que eram o penhor da sua soberania _, a lamber, também, as montras, fútil e feliz, com metade da carga dos problemas do mundo alijada. Por sua vez, aliviada do mito, a jogar jogo limpo, repesa das maçãs ardilosas do bem e do mal estendidas a boa-fé do Adão eterno, a correr risco de amar fogosamente um homem em vez de escolher apenas o pai dos filhos, obreira entre obreiros, envergonhada dos tempos privilegiados de rainha mestra dum enxame de zângãos, apostados em merecer a honra da selecção do voo nupcial…. A prova do fogo da declaração masculina, abolida, e o certificado físico da virgindade feminina, também. Tudo simples, natural e a meias. Um pacto de não agressão e de colaboração, sem cláusulas secretas, assinado por uma astúcia que pode tirar de vez para sempre a máscara da submissão e mostrar o rosto triunfante, e por uma candura filantrópica, que julga abdicar esclarecidamente dum mando que exercia na ordem precária dos factos, e que nunca lhe pertenceu de direito.”


“ MIGUEL TORGA – DIÁRIOS -1970”

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Um abraço.
Ana

domingo, 25 de novembro de 2012

"Os meus Poetas ".....

CHUVA

Chove um grossa chuva inesperada,
Que a tarde não pediu mas agradece.
Chove na rua, já de si molhada
Duma vida que é chuva e não parece.

Chove, grossa e constante,
Uma paz que há-de ser
Uma gota invisível e distante
Na janela, a escorrer….

Miguel Torga Diário -Março 1943

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Um abraço Ana




domingo, 21 de outubro de 2012

Os meus POETAS "18 de Maio de 19..."



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O movimento surpreendeu toda a gente. Surpreendeu os seus organizadores, que não contavam com tão pronta e ampla aceitação das palavras dadas. E surpreendeu as autoridades, que não haviam acreditado nos boatos de greve chegados de todo o lado através da rede de informadores. Se, a partir de 17 para 18, haviam ido prender Gaspar a sua própria casa, não fora tanto por receio da greve, como para pôr fim a tais boatos, que várias informações atribuíam a Gaspar.

Depois, no dia 18, aqueles mesmos que na véspera desdenhavam da possibilidade duma greve, julgaram tratar-se do prólogo duma insurreição. Daí os apelos ao governo das autoridades locais apavoradas e as impressionantes forças enviadas para a região.
Querendo punir exemplarmente todos os que participaram no movimento, os fascistas prenderam milhares de pessoas na tarde do dia 18. Prenderam a eito, sem fazerem seleção, como um monstro furiosos dando sapatadas no escuro.

Homens, mulheres e crianças, operários e camponeses, artesãos e comerciantes, todos quantos foram encontrados nos locais das manifestações, foram cercados, fechados em círculos de espingardas e metralhadoras e assim mantidos, enquanto um vaivém de camiões os ia levando para a capital. Na maior manifestação, aquela em que Paulo fora arrastado, a tropa, depois de cercar os manifestantes de depois de alguns recontros com tiros espadeiradas, fê-los entrar na arena da praça de touros e daí os acartou durante a noite e na manhã do dia seguinte.
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Uma semana depois do movimento, apareciam em toda a região novos manifestos, em várias fabricas Comissões pediam à gerência para transmitir às autoridades a reclamação dos trabalhadores de que fossem libertados os seus companheiros presos e o mesmo era feito em vilas e aldeias junto das autoridades locais.

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No dia 19, apresentaram-se ao trabalho quantos estavam em liberdade, mas, em muitos casos, quer em fábricas e oficinas quer nos campos, a faina foi reduzida, dado o elevado número de presos.

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Ainda no mês de Maio, tanto nos campos como nas fábricas e oficinas registaram-se apreciáveis aumentos de salários e por todas as terras da região apareceram géneros que há muito faltavam. Em todos os casos, era dito que tais medidas só eram possíveis com ordem nas ruas e com espírito de cooperação entre as classes e entre o povo e o governo e que, a verificarem-se mais perturbações como a do 18 de Maio, não poderiam ter lugar ou manter-se as melhorias. Os trabalhadores e a população em geral sorriam dessas razões, pois estava à vista que só em virtude do 18 de Maio tais concessões haviam sido alcançadas.””

“Até Amanhã Camaradas Manuel Tiago – Edições Avante”

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Um abraço do tamanho do mundo
Ana

domingo, 30 de setembro de 2012

"Os meus Poetas" - Engrenagem"

“Para os trabalhadores sem trabalho – rodas paradas de uma engrenagem caduca”

“ Os homens baixaram a cabeça, em anuência. Ti Paulino parou de limpar o tampo do balcão; mas nada disse, A fraqueza do negócio e os fiados, que nunca recusava, tinham-lhe amortecido a antiga tagarelice. Envelhecera muito. Apenas à hora da B.B.C. vibrava ainda fiel às ideias e aos homens cujos retratos ornamentavam as paredes.

Zé Lérias continuou: - Razão tinha eu, desde o princípio; mas ninguém quis seguir os meus conselhos…. Agora, em vez de terras, tendes aquela sombra negra para sempre. Estão ali milhares de contos à ferrugem. – E pôs-se a marralhar em certa ideia.

- O mal não é da fábrica, mas da guerra, que consome as matérias-primas e o carvão – objectou Fariseu.

- Pois sim. Mas se cada qual amanhasse uma courela, tinha pão com fartura, pelo menos. Além disso trabalhava por sua conta, que é o melhor.

- Ora o que faz o progresso são as máquinas. Há lá coisa mais bela que um motor a trabalhar!

- Isso diz você, que nunca viu nascer um pé de trigo. Progresso! Você e os mais devem ter a barriga cheia dele.

Foi estendendo a mão à esquerda e à direita, em despedida, indiferente aos argumentos do operário, e, da porta chacoteou:

- Adeusinho. Avenham-se com o progresso.

Ninguém mais falou, por muito tempo. A controvérsia envenenara o ambiente, exacerbando a raiva contra a fábrica. Os operários passaram a olhá-la de banda e a distância, e, às vezes, dirigiam-lhes palavras rancorosas.
……………………………………………………………
O alarido batia de encontro aos peitos timoratos e abalava-os como porta que se não pode abrir, mas ia cedendo. Por fim o magote fez-se num mar de trapos e bramidos e o mar rolou pela rua abaixo com fragor.
……………………………………………………….

- Parem! A fábrica…… Escutem por favor….

Foi levado na onde humana, de roldão: bateu com a cabeça nas paredes; um fio de sangue escorreu-lhe da testa até aos beiços.
Levantou-se, porém: galgou o muro da horta, em correria e embrenhou-se na sombra do hangar.
………………………………………………………………….

- Mas a maioria que Robalo chefiava pretendia esfanicar o forno e os motores.
De súbito, no patim da escada que dava acesso aos maquinismos, apareceu um vulto com o bico de uma parelho de soldar acesso, na mão direita, e um ferro, na sinistra.

-Aquele que subir, queimo-lhe os olhos! – Trovejou, embora incapaz de cumprir tal ameaça.

A multidão parou estupefacta. À luz do maçarico a cara do Fariseu, lambuzada de sangue, horrorizava.
……………………………………………………

Tenham juízo! - Berrou de novo, o operário - Qualquer dia podem aparecer comboios de carvão, e sem máquinas nunca mais haveria trabalho nesta aldeia. A culpa não é da fábrica. É de quem faz as guerras e a fome.

Tem razão - exclamou Triste. E foi como o sinal para um coro dissonante.

-Queremos pão!

- A gente quer trabalhar, e não tem onde!>



Oiçam! Aqui não se encontra que comer. Vamos à vila. O regedor Lazário foi-se embora? Pois reclamaremos trabalho ao administrador, que pode mais. Quem me acompanha?

- À vila ! À vila! Esganiçou-se a multidão, irrequieta e volúvel como as ondas do mar.

O orador desceu a escada e pôs-se em marcha. Atrás seguiu o povo da aldeia entusiasmado, passo largo, cada vez mais certo……..”

“Setembro 1944 – Soeiro Pereira Gomes- Engrenagem"


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Um abraço
Ana

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Histórias de Vida – “MEDOS”



As mesas estavam tão próximas que não pôde deixar de ouvir:

-“É melhor darmos o nosso nº de telemóvel e o da polícia aos nossos vizinhos e pedirmos que se ouvirem alguma coisa chamem a polícia.

-Para quê perguntou-lhe a mulher?

- “Assim vamos mais descansados para férias”, - respondeu-lhe o marido.”

Ouviu esta conversa no domingo à hora de almoço num restaurante de bairro, e, não pôde deixar de pensar que o MEDO estava a tomar conta dos portugueses,

Ela própria na véspera tinha estado todo o dia num estado de grande ansiedade, porque a sua filha mais nova tinha ido, pela primeira vez, a um concerto e para “apanhar um bom lugar”, tinha estado na fila desde as 9 horas da manhã e o concerto era só às 8 da noite !!!!

Cada vez que lhe ligava, antes do início do concerto e não era atendida, começava a sentir-se angustiada, MEDO tinha tido muito MEDO que lhe acontecesse alguma coisa!

As imagens que a televisão passou sobre o atentado de Utoya, já tinha passado um ano, deixaram-na angustiadas todo o fim-de-semana.

Lembrou-se que ainda há bem pouco tempo, ao ir apanhar o comboio para se deslocar para o seu emprego em Lisboa, tinha tido um “choque” :

- Ao chegar à estação dos comboios, por volta das sete e pouco da manhã, deu com dois comboios, parados, um a seguir ao outro, com meia dúzia de metros a separá-los, na linha do sentido, para Lisboa.

Dirigiu-se para o fim da estação, como era seu hábito e, deparou-se com uma multidão que ladeava um banco. Aproximou-se e viu um jovem, deitado com a camisa coberta de sangue.

“-Que tinha sido assalto diziam uns”. –“Foram os “pretos” essa cambada, diziam outros”.

Foi ter com um revisor que falava, ao telefone e que dizia em voz alta:

“ Que não sabia quando chegava o INEM e que não tinha telemóvel para ligar outra vez para o 112.”

Emprestou-lhe o seu telemóvel, para que ligasse para o 112, e, ficou a saber que não tinha sido um assalto mas sim o resultado de uma discussão entre passageiros.

- Na estação do Cacém um passageiro terá empurrado uma jovem, a mãe da jovem interveio e, o passageiro não esteve com meias medidas, agrediu as duas. O jovem, o ferido, interveio, e nem deu porque tinha levado uma facada, dada pelo tal passageiro, que entretanto se tinha posto em fuga e que afinal até era branco……

Ainda assistiu à passagem do tal passageiro, algemado, acompanhado já por polícias a caminho da esquadra.

À noite tentou saber, junto do responsável da estação se tinha alguma notícia do jovem, mas não obteve nenhuma informação.

A que estado, de alma, chegámos para que uma discussão origine tanta violência.

Não se conseguia libertar da sensação de que vivíamos uma paz, que era artificial, e que um dia destes rebentava que nem uma bolha gigante.

A ineficácia do Governo também contribuía, e muito, para o MEDO de que não se conseguia libertar. Não era MEDO físico era uma sensação de intranquilidade.

A intranquilidade de quem sente que o que foi conquistado pela sua geração está em perigo permanente:

- O Direito ao trabalho

– Quem pode ter tranquilidade com uma taxa de 18% de desemprego ??

- O Direito à saúde

– Quando ouvia alguém falar do Sistema Nacional de Saúde perdia a paciência. O que estava em causa era e é o Serviço Nacional de Saúde, consagrado na Constituição e não o Sistema Nacional de Saúde;

- O Direito à Educação

– Uma das suas filhas estava em risco de ter de mudar de escola, só porque tinha tido a pretensão de mudar de área no 10º.

- “Era o preço a pagar por não saber o que queria, tinha-lhe dito um responsável da escola” !!!!!!

A sua escola, a atual fica a 5 minutos de casa, mas as alterações resultantes dos Agrupamentos Escolares podem deixá-la sem vaga.

Se nos distraímos um pouco, só, que seja ficamos sem nenhuns direitos e, não pensava só em si pensava e muito, nas gerações futuras.

O cansaço que sentia nas pessoas com quem se cruzava no dia-a-dia, também, lhe fazia sentir MEDO. MEDO da apatia, generalizada, que pouco a pouco ia ganhando terreno no seu, nosso, País.

Ao ver as notícias das manifestações em Espanha, e, não gostava mesmo nada que nos comparassem com os Espanhóis, não pôde deixar de se lembrar de um Poema de Miguel Torga:

PANORAMA

Pátria vista da fraga onde nasci.
Que infinito silêncio circular!
De cada ponto cardeal assoma
A mesma expressão muda.
É de agora ou de sempre esta paisagem
Sem palavras,
Sem gritos,
Sem o eco sequer duma praga incontida?
Ah! Portugal calado!
Ah! Povo amordaçado
Por não sei que mordaça consentida!

“Miguel Torga-Poesia Completa”
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UM abraço Ana

sábado, 7 de julho de 2012

Histórias de Vida – Amorfismo ou Medo?



Um destes dias ouvi um dirigente sindical afirmar em público que tínhamos que acabar com o amorfismo em que os portugueses estão.

Há muito tempo que não ouvia empregar este termo e tive dúvidas se o estava a entender bem. Pensando melhor penso que o que quereria dizer é que os Portugueses precisam de reagir de partir para a luta de não se acomodarem….

Não sei se os Portugueses estão a sofrer de amorfia mas tenho a certeza que a uma boa parte deles o que os impede de falar é o MEDO, MEDO de perderem o emprego, MEDO de serem agredidos. MEDO !!!!! MEDO !!!!! De tudo.

Vem isto a propósito de uma cena a que assisti nos Armazéns do Chiado na cafetaria dum espaço que vende livros, música….

Estava eu sentada a uma mesa, a comer, quando vejo uma jovem com uma chávena de chá numa mão e um prato com um bolo na outra dirigir-se para uma mesa que estava vazia.

Volto a olhar e vejo-a a voltar para trás a abanar a cabeça, com um ar indignado.

Moral da história, estava um grupo na fila para pagar os cafés e um dos membros saiu da fila para ir “marcar” a mesa e a jovem que estava à frente ficou sem lugar.

Ofereci-lhe lugar na minha mesa, que aceitou, e fiquei com vontade de a questionar porque é que não tinha dito nada, mas não o fiz. Certamente o que a travou a ela foi o medo de uma discussão em público. O que me travou a mim foi o pudor, não a quis incomodar mais do que já estava.

Será que já não vale a pena reagir? Que já estamos tão esgotados? Que já nos consideramos derrotados?

Quem responde ????

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É uma republicação mas a pergunta mantém-se:

- Quem responde?

- Por onde andam que não se deixam ouvir?

Um abraço
Ana

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Os meus POETAS - Flor da Liderdade


Flor da Liberdade



Sombra dos mortos, maldição dos vivos.

Também nós… Também nós… E o sol recua.

Apenas o teu rosto continua

A sorrir como dantes,

Liberdade!

Liberdade dos homens sobre a terra,

Ou debaixo da terra.

Liberdade!

O não inconformado que se diz

A Deus, à tirania, à eternidade.



Sepultos insepultos,

Vivos amortalhados,

Passados e presentes cidadãos:

Temos nas nossas mãos o poder de recusar!

E é essa flor que nunca desespera

No jardim da perpétua primavera.


"Miguel Torga – Antologia Poética"

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Um abraço
Ana

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Os meus POETAS - Biografia

Biografia


Sonho, mas não parece.

Nem quero que pareça.

É por dentro que eu gosto que aconteça

A minha vida.

Íntima, funda, como um sentimento

De que se tem pudor.

Vulcão de exterior

Tão apagado,

Que um pastor

Possa sobre ele apascentar o gado.




Mas os versos, depois,

Frutos do sonho e dessa mesma vida,

É quase à queima-roupa que os atiro

Contra a serenidade de quem passa.

Então, já não sou eu que testemunho

A graça

Da poesia:

É, ela, prisioneira,

Que vendo a porta da prisão aberta,

Como chispa que salta da fogueira,

Numa agressiva fúria se liberta.


"Miguel Torga – Antologia Poética"

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Um abraço
Ana

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Os meus POETAS..... Não Passarão

Não Passarão


Não desesperes, Mãe!
O último triunfo é interdito
Aos heróis que o não são.
Lembra-te do teu grito:
Não passarão!


Não passarão!
Só mesmo se parasse o coração
Que te bate no peito.
Só mesmo se pudesse haver sentido
Entre o sangue vertido
E o sonho desfeito.


Só mesmo se a raiz bebesse em lodo
De traição e de crime.
Só mesmo se não fosse o mundo todo
Que na tua tragédia se redime.


Não passarão!
Arde a seara, mas dum simples grão
Nasce o trigal de novo.
Morrem filhos e filhas da nação,
Não morre um povo!


Não passarão!
Seja qual for a fúria da agressão,
As forças que te querem jugular
Não poderão passar
Sobre a dor infinita desse não
Que a terra inteira ouviu
E repetiu:
Não passarão!


“Miguel Torga – Antologia Poética”



domingo, 20 de maio de 2012

Os meus POETAS ...Cansaço

Cansaço

O que há em mim é sobretudo cansaço —
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas —
Essas e o que falta nelas eternamente —;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimno, íssimo, íssimo,
Cansaço...

Álvaro de Campos, em "Poemas"

domingo, 6 de maio de 2012

Os Meus Poetas…. MÃE



Mãe:
Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?


Como as estátuas, que são gente nossa
Cansada de palavras e ternura,
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
Que não tem coração dentro do peito.


Chamo aos gritos por ti – não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto – sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio.


Mãe:
Abre os olhos ao menos, diz que sim!
Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és a eterna mulher, entre as mulheres.
Que nem a morte afastou de mim!

“Miguel Torga – Antologia Poética”

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Um abraço

Ana

sábado, 5 de maio de 2012

Os meus POETAS ..... RECOMEÇO





Recomeça...se puderes, sem angústia e sem pressa e os passos que deres nesse caminho duro do futuro, dá-os em liberdade, enquanto não a alcançares não descanses..."

" Miguel Torga...."

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Um abraço
Ana

terça-feira, 1 de maio de 2012

Os meus POETAS.... Meu Camarada e Amigo

Meu Camarada e Amigo

Revejo tudo e redigo
meu camarada e amigo.
Meu irmão suando pão
sem casa mas com razão.
Revejo e redigo
meu camarada e amigo

As canções que trago prenhas
de ternura pelos outros
saem das minhas entranhas
como um rebanho de potros.
Tudo vai roendo a erva
daninha que me entrelaça:
canção não pode ser serva
homem não pode ser caça
e a poesia tem de ser
como um cavalo que passa.

É por dentro desta selva
desta raiva deste grito
desta toada que vem
dos pulmões do infinito
que em todos vejo ninguém
revejo tudo e redigo:
Meu camarada e amigo.

Sei bem as mós que moendo
pouco a pouco trituraram
os ossos que estão doendo
àqueles que não falaram.

Calculo até os moinhos
puxados a ódio e sal
que a par dos monstros marinhos
vão movendo Portugal
— mas um poeta só fala
por sofrimento total!

Por isso calo e sobejo
eu que só tenho o que fiz
dando tudo mas à toa:
Amigos no Alentejo
alguns que estão em Paris
muitos que são de Lisboa.
Aonde me não revejo
é que eu sofro o meu país.

Ary dos Santos, em 'Resumo'


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Um abraço
Ana

domingo, 29 de abril de 2012

Os meus POETAS..... Lamento


LAMENTO

Pátria sem rumo, minha voz parada
Diante do futuro!
Em que rosa-dos-ventos há um caminho
Português?
Um brumoso caminho
De inédita aventura,
Que o poeta, adivinho,
Veja com nitidez
Da gávea da loucura?


Ah, Camões, que não sou, afortunado!
Também desiludido,
Mas ainda lembrado da epopeia….
Ah, meu povo traído,
Mansa colmeia
A que ninguém colhe o mel!.....
Ah, meu pobre corcel
Impaciente,
Alado
E condenado
A choutar nesta praia do Ocidente…



“Miguel Torga – Poesia Completa”


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Um abraço Ana

sábado, 28 de abril de 2012

Para os AMIGOS que partiram cedo demais....

Cântico Negro


"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

José Régio - Poemas de Deus e do Diabo

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Um abraço Ana

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Os meus POETAS..... Liberdade

Liberdade

- Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre-nosso que sabia,
A pedir-te humildemente,
O pão de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.


- Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.

Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
- Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome



" Miguel Torga - Poesia Completa"


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Um abraço
Ana

terça-feira, 24 de abril de 2012

Os meus POETAS....

Porque, e citando Miguel Torga:
“ – As coisas boas esquecem. As más é que não. É que só elas deixam cicatrizes”

E porque é bom que não nos esqueçamos de como era antes....

Aqui fica:


Lembrança


Ponho um ramo de flores
na lembrança perfeita dos teus braços;
cheiro depois as flores
e converso contigo
sobre a nuvem que pesa no teu rosto;
dizes sinceramente
que é um desgosto.

Depois,
não sei porquê nem porque não,
essa recordação desfaz-se em fumo;
muito ao de leve foge a tua mão,
e a melodia já mudou de rumo.

Coisa esquisita é esta da lembrança!
Na maior noite,
na maior solidão,
vem a tua presença verdadeira,
e eu vejo no teu rosto o teu desgosto,
e um ramo de flores, que não existe, cheira.

Lisboa, Cadeia do Aljube, 6 de Dezembro de 1939
“Miguel Torga - Diário”

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Um abraço, cheio de esperança, do tamanho do mundo.

Ana

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Esperança..............

- "Uma pequena esperança, mesmo uma esperança sem esperança, não prejudica ninguém." “John Steinbeck” ________________________________________________________________ Um abraço Ana

sábado, 14 de abril de 2012

Histórias de vida …..

Há muito tempo que já nada do que se passava, no seu dia-a-dia, no País, a conseguia tirar do sério.

A sua capacidade de resistência, à falta de educação dos que a rodeavam, no dia-a-dia, dir-se-ia que era quase ilimitada. Conseguia aguentar, tudo,com um sorriso.

Mas, naquela dia, alguma coisa tinha mudado. Deu consigo quase a saltar para cima da senhora, que ao seu lado, no comboio, sem o mínimo sinal de decoro, limava as unhas com uma fúria como se o destino do mundo dependesse do grau de perfeição das ditas . O barulho que a lima provocava, era-lhe insuportável.

Mas o pior ainda estava para vir. À sua frente sentou-se um homem, na casa dos trinta, que, quando se mexia não cheirava propriamente bem.

Tentou concentrar-se na leitura, mas os contos de Miguel Torga, que não são propriamente leves, também não ajudavam.

A meio da viagem levantou-se para ceder passagem. Não compreendia como os passageiros continuavam sentados quando alguém precisava de sair, sem cederem passagem, dada a exiguidade do espaço que separa os bancos. Claro que a passageira não se dignou agradecer e deu consigo quase a “rosnar” a dizer entre dentes mas de forma audível “OBRIGADA”.

Andou o dia todo irritada, embora não o demonstrasse. Finalmente à noite compreendeu a sua irritação quando ouviu falar num qualquer programa de televisão, da legislação que interditava a apresentação dos pedidos de reforma antecipada.

Afinal a sua dor, o seu mal estar, a sua irritação, era porque :

- TINHAM-LHE ROUBADO, MAIS, MAIS UM PEDAÇO DE LIBERDADE.Deu consigo a falar sozinha:

Que foi que fizemos para merecer um Governo como este? O que era sustentável(Segurança Social) há 3 meses, agora já não o é?

Que herança, que exemplos, deixamos para as gerações futuras se permitimos que nos tirem (ROUBEM) todos os direitos?

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Bom fim de semana
Um abraço
Ana

quarta-feira, 11 de abril de 2012

HISTÓRIAS DE VIDA ….. -“Endoideci “

-“Endoideci “

Pensou a Eva para si própria quando deu por si a tentar abrir a porta da sua casa com o cartão com que abria as portas da entidade onde trabalhava.

O cansaço era muito, mas, mesmo assim, tentou fazer um exercício que fazia já há alguns anos, quando estava muito cansada.

Fechar os olhos e tentar lembrar-se da roupa que os colegas que trabalhavam com ela, na mesma sala, tinham vestida nesse dia.

Não conseguiu lembrar-se da roupa de nenhum e são apenas quatro.

- “Decididamente que ando a funcionar em piloto automático.”

Fez ainda mais uma tentativa de se lembrar da roupa da colega, do andar de cima, com quem tinha estado reunida uma boa parte da tarde e nada.

Concluiu que o seu médico tinha razão. Não podia continuar a trabalhar mais de dez horas por dia, sem sofrer as consequências.

Jantou em família e resolveu tomar um comprimido, tal como lhe tinha sido aconselhado ,pelo seu médico, para dormir. Talvez assim conseguisse desligar.

Antes de adormecer relembrou, ainda, a imagem que tinha visto nesse dia, muito cedo, e que a tinha deixado amargurada, a Mª José , a sem abrigo, a dormir, enroscada, no chão, como se fosse uma minhoca.

- Como é que um ser humano suporta tanto? Pensou ……

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É uma republicação, mas mudam-se os tempos e as circunstâncias só mudam para pior.

Um abraço do tamanho do mundo
Ana

domingo, 8 de abril de 2012

Oe meus Poetas - " Regresso"

Regresso

Quanto mais longe vou, mais perto fico

De ti, berço infeliz onde nasci.

Tudo o que tenho, o tenho aqui

Plantado.

O coração e os pés, e as horas que vivi,

Ainda não sei se livre ou condenado.



Miguel Torga – Antologia Poética


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Um abraço e deixem-se ouvir
Ana

sábado, 7 de abril de 2012

Histórias de Vida – Era uma vez…..



“Era uma vez …..…” é uma expressão que associamos à nossa infância, e que nos traz boas recordações à memória.

Lembramo-nos das histórias que a nossa mãe nos contava.

Do tempo em que os nossos filhos eram, ainda, pequenos, e nos pediam :

- Oh mãe conta lá outra vez. E nós lá recomeçávamos:

- “Era uma vez……..”


Não pôde deixar de pensar:

-Era uma vez….

- “uma menina que tinha começado a trabalhar aos dezasseis anos, que tinha podido estudar até aos quinze anos, mas que para poder continuar os estudos tinha tido que trabalhar e estudar à noite, que tinha acreditado que a uma vida de trabalho correspondia, sempre, o direito a uma remuneração (Reforma/Pensão) , para a qual tinha contribuído a vida inteira, e a que agora chamam pensão social, que lhe permitiria que após muitos e muitos anos de trabalho,41 mais precisamente, ter o direito de se reformar quando muito bem entendesse e nunca por nunca seria permitido que esse direito fosse posto em causa.

Era em tudo isto que pensava após uma das suas filhas de lhe ter dito:

- Olha mãe põe de lado a ideia de te reformares um dia destes, porque só te podes reformar aos 65 anos.

Era uma vez….. um país que tem um governo que chama piegas aos cidadãos que lhes dá continuamente murros no estômago, e que continua impune.

Era uma vez um deputado que tem um gato que se chama Gaspar. Era uma vez um ministro das Finanças que se chama , também Gaspar, e era uma vez um Pais que se chama Portugal, que tem um Governo que não tem palavra………e que está a transformar a nossa vida num pesadelo.

É, pensou para consigo :

" Era uma vez um país de brandos costumes que um dia destes acorda e deixa de o ser.

E, entã, voltaremos a contar:

- Era uma vez….
“Um Belo País, com um POVO como poucos, que estava adormecido havia muito tempo porque tinha um governo em que só havia….. sabe-se lá o quê, mas que mesmo assim lhes metia muito medo e, o tempo continuava a passar e todos ao dias alguma coisa mudava e era sempre para pior.

Até que um dia, há sempre um dia , em que se diz basta , em que o POVO acorda e o POVO deste País há - de acordar …… e era uma vez ……. "

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Um abraço Ana

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Os meus Poetas....

Antes que Seja Tarde


Amigo,
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda, amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha,
abre os braços e luta!
Amigo,
antes da morte vir
nasce de vez para a vida.

Manuel da Fonseca - "Poemas Dispersos"

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Um abraço do tamanho do mundo
Ana

- Por onde andam que não se deixam ouvir?

domingo, 22 de janeiro de 2012

"Os meus Poetas "........

Com Fúria e Raiva

Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada

De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse

Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra

Sophia de Mello Breyner Andresen, em "O Nome das Coisas"


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Um abraço
Ana

Passeio BTT Aboboreiras